Continuação do post: A noite em que eu enfrentei meus demônios (parte II) – os tormentos no bar.
Disquei rapidamente e, em pânico, expliquei minha situação à atenciosa voz do outro lado
da linha.
Eu sabia que devia estar parecendo um completo desvairado. A voz me disse calmamente para eu ir ao seu encontro.
Pulei para dentro de um táxi e cheguei lá em dois tempos. Da rua principal, avistei a porta da frente e toquei a campainha.
A tranquilidade e as sombras do lugar não ajudavam a minha ansiedade. Sentia-me naquela famosa cena de “O Exorcista”.
A porta se abriu e a claridade do lado de dentro instantaneamente dissipou a estranha penumbra que me cobria enquanto eu esperava.
Fui recebido por um dos irmãos, o mesmo que tinha me atendido ao telefone.
Eu devia estar parecendo um monstro alcoolizado, com os meus olhos arregalados, o rosto pálido e um terrível bafo de cerveja.
Enquanto eu esperava na entrada, a porta da frente se abriu de novo e dela saiu um velho sacerdote baixinho, com óculos redondos, uma boina e um longo casaco preto.
Ele juntou-se a nós e, “Boa noite, irmão!”, disseram alegremente um ao outro, como fazem os irmãos.
Fui apresentado a um quarto de hóspedes fora do hall de entrada. A
lguns minutos depois, apareceu um padre de meia idade, com os olhos pesados, vestido em uma roupa clerical já meio desgastada. Obviamente, eu tinha tirado o pobre homem da cama.
Ríspido, ele deixou claro que tudo aquilo era muito fora do comum, mas eu implorei tanto que ele escutasse a minha confissão que, vendo o quão perturbado eu me encontrava, ele misericordiosamente assentiu.
Eu estava bem fora de prática. Eram, afinal, dez anos sem me confessar.
O padre me ajudou e, com lágrimas, consegui acusar os meus pecados. Recordei o Ato de Contrição da minha infância e, com as palavras finais da absolvição e de olhos fechados, todo meu pavor foi embora, completamente. Nunca tinha ficado tão agradecido como naquele momento. Pedi desculpas pela invasão e deixei aquela casa em paz.
Um coração consideravelmente mais iluminado observava a velha cidade escura, enquanto eu pulava as poças de água para pegar o ônibus para casa.
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Nada à minha volta tinha mudado, mas eu sim…
Eu estava reconciliado. Percebi que apenas os meus próprios pecados podiam realmente me fazer mal.
Se eu pudesse cortar todas as amarras que me prendiam a eles, perderia também o meu medo da morte, para sempre e de uma vez por todas.
Eu estava finalmente de volta ao aprisco e, agora, deveria dar o meu melhor para ficar aqui.
Esse empenho continua até o dia de hoje, nesse tortuoso caminho familiar a todos os pecadores arrependidos. Minha paranoia levou-me a uma metanoia, a uma completa mudança de mentalidade e de vida.
Tive ainda que encontrar uma paróquia para ser minha casa espiritual e reestabelecer o hábito de ir à Missa regularmente.
Levaria alguns anos até que eu novamente me sentisse parte de uma comunidade paroquial, como a que eu tinha em minha juventude. O casamento e os filhos ajudaram a acelerar esse processo.
Voltei à rotina do hospital.
Aqueles pobres pacientes continuavam a morrer, mas, agora, eu rezava por suas almas, pedindo que recebessem o presente que eu tinha recebido, que a luz perpétua os iluminasse.
O moderno tratamento médico pode alterar apenas a hora, o lugar e o modo da morte corporal, mas não a sua ocorrência inevitável. Infelizmente, muitos pacientes e familiares não conseguem ver essa limitação ou sequer chegam a considerar a sua vida espiritual.
Ninguém deveria “entrar gentilmente naquela boa noite” (“go gentle in that good night“) sem alguma preparação para o caminho e uma “luz generosa” (“Kindly Light“) para o guiar.
Pacientes de câncer estão bem conscientes de que foram invadidos por uma força hostil que intenta a sua aniquilação.
Católicos veem os pecados mortais sob essa mesma luz: eles são um tumor letal, uma sentença de morte para a alma, separando-a para sempre de Deus, que é seu único verdadeiro repouso e morada.
Todo o Evangelho não trata senão da morte dessa “sentença de morte”, alcançada pelo único sacrifício de Cristo por todos na Cruz.
O pior câncer imaginável pode em teoria ser curado por uma dose totalmente ablativa de radiação, enviada a todo o corpo.
Isso mata não apenas as células cancerígenas – para onde quer que elas se tenham espalhado –, mas também a médula óssea, fonte vital de imunidade.
Sem um transplante de medula, o paciente irá morrer rapidamente mesmo com a mais inofensiva infecção, como uma gripe comum.
A médula doada deve ser totalmente compatível, ou há um risco de que ela comece a atacar os próprios tecidos do paciente.
O transplante que Jesus nos dá na Eucaristia é perfeitamente compatível e revivificador para a alma humana, já que Cristo é o doador universal.
Mas esse transplante só “funciona” com segurança na alma que foi perdoada do pecado grave pelas terapias ablativas e purificadoras do Batismo e da Reconciliação, que iluminam a alma com a graça santificante.
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A dor, a doença, a tristeza a e morte…
Geralmente não nos são tiradas por Jesus. Ao contrário, Ele nos mostra como usá-las santamente, em ordem a unirmos os nossos sofrimentos aos d’Ele.
Mesmo sendo um ótimo remédio, a medicina não substitui uma união cada vez mais íntima com Jesus, e a Sua imitação nas coisas mais pequenas, até o sacríficio final – para tanto, serão suficientes, pelo menos a princípio, os sofrimentos ordinários que todos nós temos no dia a dia.
As flechas do nosso desejo de união com Deus, que nós lançamos contra a nuvem do desconhecido (que esconde Deus de nós), retornam para nós, no bom tempo de Deus, como dardos apontados para os nossos corações e envolvidos com o óleo da caritas transformadora.
O misterioso é que nossas flechas estão geralmente sendo lançadas para cima sem a nossa plena consciência, enquanto as nossas almas trabalham, balindo no subconsciente por ajuda.
Quanto mais distante as ovelhas, mais aguçados os ouvidos do Bom Pastor. Se algumas vezes parece que as nossas orações não estão sendo atendidas, deve ser porque nosso Senhor está ocupado lidando com aquelas em maior perigo.
A paciência é sempre vital para nós, que somos Seus pacientes.
É quando somos levados por nossas escolhas ou pelas circunstâncias ao nosso ponto mais baixo e nos encontramos desamparados, que a graça de Deus pode intervir ao máximo.
Quando somos fracos, Ele é o mais forte. Deus é gentil e educado e nunca faz violência contra nós – até mesmo o divino médico exige o nosso consentimento.
Mas Ele nunca fracassa em salvar-nos de nossa aflição, se permitirmos que Ele aja.
Mais de 20 anos depois, agora eu posso ver como Deus resgatou minha alma doente e entorpecida de um destino literalmente pior que a morte.
Sem a sombria epifania que eu experimentei naquele bar, e aquilo a que ela me levou, só Deus sabe onde eu estaria agora.
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Fonte: https://padrepauloricardo.org
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