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Aquilo que para nós, sem dúvida, é mais incompreensível em Deus é que, bastando-se perfeitamente a si mesmo, não precisando de nada, não podendo ganhar nada de nada, tenha criado o Mundo e o Homem, que ele ame.
Há nele alguma coisa que corresponde ao que chamamos uma “conduta”, pela qual parece ter necessidade do Homem, de se entregar a uma espécie de luta com o Homem para o conquistar e arrancar às consequências das faltas que o Homem comete graças a um livre arbítrio que o próprio Deus lhe deu, e que Deus respeita, apesar de ser de tudo o Senhor absoluto.
Ao considerar a criação e a redenção, dir-se-ia de verdade que Deus tem necessidade do Homem, que ele não pode resistir ao amor que o impele a expandir-se, a querer que a sua felicidade não seja a única, que haja uma felicidade que, de certa maneira, se junte à sua.
E, por outro lado, quando raciocinamos sobre Deus, compreendemos que Ele não pode ter necessidade de nada, que nenhuma felicidade pode acrescentar alguma coisa à sua, que nada pode aumentar o que quer que seja ao que Ele possui.
E chega-se então a uma tal gratuidade no amor divino que o espírito desfalece, porque somos incapazes de nos elevarmos tão alto.
Um amor que dá, sem necessidade de dar, sem nada que corresponda ao que chamamos um motivo, um desejo, sem nada esperar, nem mesmo a satisfação de ter dado, que não retribui absolutamente nada, rigorosamente nada ao que ama, em que a vantagem é unicamente para o que recebe.
Um amor que estritamente só tem efeito sobre o que recebe, não experimentando o que dá qualquer mudança de algum modo concebível – um unilateralismo tão absoluto ultrapassa-nos totalmente e dá vertigens quando se tenta representá-lo.
Por isso toda a literatura sobre Deus faz uso de antropomorfismos.
Apresenta-se o amor de Deus como um amor que lhe faz desejar o Homem, sofrer os pecados dos homens, lutar para conquistar o Homem, rejubilar com a virtude do Homem.
Na realidade, tudo isso significa simplesmente que atos análogos ao que Deus realiza corresponderiam em nós a tais sentimentos.
Em Deus, nada há disso: o amor de Deus é pura gratuidade.
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Fonte: Jacques Leclercq, “Diálogos do homem e de Deus”
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