“Convém que morra um homem pelo povo e que não pereça toda a nação (Io. 11, 50).
Tendo os iníquos pontífices decretado a morte de Jesus Cristo, tiveram grande satisfação ao ver que Judas, um dos discípulos, se oferecia a traí-Lo e entregar-Lho nas mãos.
O Senhor conhece perfeitamente a felonia de Judas e todavia não deixa de tratá-lo como amigo na mesma forma que de antes; olha-o com benevolência, não recusa a sua companhia e chega a prostrar-se-lhe aos pés para os lavar.
Ó inefável benignidade! Que belo exemplo para nós, se o quisermos aproveitar!
O Justo foi entregue as mãos dos escarnecedores
No mesmo tempo em que Jesus andava derramando graças e fazendo milagres para benefício de todos, reúnem-se os primeiros personagens da cidade de Jerusalém a fim de tramarem a morte do Autor da vida.
Refere São João que se ajuntaram os pontífices e os fariseus em conselho e diziam: Que fazemos nós? Este homem faz muitos milagres; se o deixamos assim livre, todos crerão nele.
Mas um deles, por nome Caifás, respondeu que lhes convinha que um homem morresse pelo povo, e não perecesse a nação toda.
“E desde aquele dia”, diz o mesmo São João, “pensavam em como haviam de o fazer morrer.” — Ah, Judeus! Não temais; vosso Redentor não fugirá, porquanto veio à terra exatamente para morrer, e pela sua morte livrar-vos a vós e a todos os homens da morte eterna.
Entretanto Judas apresenta-se aos pontífices e diz: Quid vultir mihi dare, et ego vobis eum tradam? (1) — “Que me quereis dar, e eu vô-Lo entregarei?” Oh! Que alegria deviam sentir os Judeus, pelo ódio que devotavam a Jesus Cristo, ao verem que um dos seus discípulos o queria trair e entregar-Lho nas mãos!
Consideremos nisso o júbilo que, por assim dizer, reina no inferno, quando uma alma, depois de servir a Jesus Cristo por muitos anos, vem a traí-Lo por qualquer miserável bem ou vil satisfação.
Mas, ó Judas, já que estás resolvido a vender o teu Deus, exige pelo menos o preço que Ele vale. É um bem infinito, merecedor portanto de um preço infinito.
Porque, pois, concluis o negócio por trinta dinheiros? At illi constituerunt ei triginta argenteos (2) — “E eles prometeram-lhe trinta dinheiros de prata”. — Minha alma, deixa Judas, e fixa em ti mesma os teus pensamentos. Dize-me, por que preço vendeste tu mesma tantas vezes a graça divina ao demônio?
Ah, meu Jesus, quantas vezes Vos virei as costas, e a Vós preferi um capricho, um empenho, um prazer passageiro e vil! Sabia que, pecando, perdia a vossa amizade e voluntariamente a troquei por um nada.
Tivesse morrido antes de fazer-Vos tão grande ultraje! Ó meu Jesus, arrependo-me de todo o coração e quisera morrer de dor.
Mesmo ao traidor, Jesus amou até o Fim!
Contemplemos agora a benignidade de Jesus Cristo, que, sabedor do ajuste feito por Judas, contudo, vendo-o, não o repele de si, nem o olha com maus olhos; admite-o em sua companhia, e ainda à sua mesa; repreende-o pela sua traição com o único intuito de chamá-lo à resipiscência; e vendo-o obstinado, chega a prostrar-se diante dele e a lavar-lhe os pés para desta arte o enternecer.
Ah, meu Jesus, é assim também que fizestes comigo. Eu Vos desprezei e traí, e não me repelis; não deixais de olhar-me com amor, e me admitis à vossa mesa da santa comunhão.
Meu amado Salvador, nada mais podeis fazer para me obrigar a Vos amar. E eu terei ânimo de continuar a ofender-Vos e pagar-Vos com a minha ingratidão? Não, meu Deus, não quero mais abusar da vossa misericórdia.
Agradeço-Vos a luz com que me iluminais e prometo que mudarei de vida. Vejo que já não me podeis suportar mais tempo.
Porque, pois, esperarei até que Vós mesmo me mandeis ao inferno, ou me abandoneis em minha vida de perdição, castigo este maior do que a própria morte?
Meu Jesus, eis que me prostro aos vossos pés. Peço-Vos perdão das ofensas a que Vos fiz e rogo-Vos que me recebais em vossa graça.
Quem me dera poder recomeçar os anos passados; quisera empregá-los unicamente em vosso serviço, ó Senhor meu. Os anos, porém, não voltam mais; por piedade, fazei ao menos que empregue o que me resta de vida, unicamente em amar-Vos e fazer que outros também Vos amem.
— Ó grande Mãe de Deus e minha Mãe Maria, socorrei-me com a vossa intercessão, pedi a Jesus que me faça todo seu. Peço-vos esta graça pela parte que tomastes na Paixão de vosso divino filho. (I 603.)
(Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 377-379.)